Primeiro a luz piscou, iluminando o céu por uma fração de segundo.
Contou:
- 1...2...3...4...5...
Antes de ouvir a trovoada.
Estremeceu. E correu ainda mais rápido. Completamente encharcada, levantando os pés com dificuldade, no meio da grama alta molhada.
Um novo raio riscou o céu.
- 1...2...3...
O estrondo veio mais rápido, anunciando que estava cada vez mais perto.
Avistou a porta de madeira, mas não conseguiu se alegrar com isso. Mesmo assim entrou e fechou a porta atrás de si.
Nesse exato momento, a música entrou. Como sempre, com a precisão de um relógio Suíço:
“Olho para chuva que não quer cessar
Nela vejo o meu amor
Esta chuva ingrata que não vai parar
Pra aliviar a minha dor...”
Junto com a voz, muito doce, chamando-a:
- Glória...
Sacudiu a cabeça de um lado para o outro, em negação. Tentou falar, mas não conseguiu emitir nem um som.
Começou a suar frio, lutando inutilmente contra o corpo petrificado, que não se movia. Sabendo perfeitamente o que se seguiria.
A presença atrás dela... Tão perto que sentiu o hálito, antes mesmo de ouvir o sussurro:
- Glorinha...
As mãos a tocaram, lhe tapando o nariz e a boca e, depois, escorregaram, descendo numa carícia sádica e macabra por seu rosto.
Gélidas. Cadavéricas. Assustadoras.
Ao redor de seu pescoço, sufocando-a, apertando com mais e mais força.
Em meio às trovoadas, o barulho da chuva caindo no telhado de zinco e a evocação que incessantemente se repetia:
- Glória... Glória... Glorinha...
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Acordou com um grito lancinante.
Demorou menos de um segundo para compreender que o som tinha vindo dela mesma, antes da porta se abrir e a mãe surgir:
- Frederica?
Nem um pouco surpresa.
Aquilo era o normal. Há anos se repetia. Frederica sequer se lembrava da primeira vez que tinha acontecido.
O mesmo sonho, desde sempre.
- Tudo bem, mãe. Eu já acordei.
A preocupação da mãe era visível e compreensível:
- Mas... Não está chovendo.
Ambas sabiam ao que ela se referia. Pois desde bebê, Frederica acordava aos gritos... Sempre que chovia. Só que nos últimos tempos, a tempestade parecia estar dentro dela.
- Tem piorado? É isso?
Muito mais pela própria tranquilidade do que pela da mãe, mentiu:
- Não. Fazia tempo que não acontecia.
Morar com os pais poderia atrapalhar, fazer com que continuar escondendo a verdade se tornasse complicado, se os anos de prática não a tivessem tornado... Quase uma perita:
- Desde que o Dido se foi, tem sido... Difícil.
Desculpa perfeita, que a mãe aceitou de imediato:
- Ah, minha querida...
Frederica sentiu-se culpada, não por enganá-la colocando a culpa na morte do cachorro, mas por ser a falha na vida perfeita dos pais. O único pesadelo que a mãe tinha.
Já era suficiente, jamais a preocuparia, confessando que a perda do melhor e único amigo não tinha nada a ver com o fato de que agora sonhava, quase todos os dias. Com o cheiro da chuva, o som das gotas, a voz, as mãos e o lento sufocar, tão conhecidos.
As primeiras recordações que tinha, antes mesmo da mãe, do pai e da própria vida. Como se estivesse vivendo uma existência que não lhe pertencia.
Quando pequena confundia. Na verdade, não sabia distinguir o que era real ou não. Algumas vezes, quando estava distraída e perguntavam seu nome, respondia:
- Glorinha.
Isso e o pavor de tempestades, raios e trovões. Não um medo normal, mas um pânico que a deixava fora de si e que fazia Frederica se esconder debaixo das camas, dentro dos armários, cada vez que chovia. Os olhos fechados, as mãos tapando com força os ouvidos. Nas poucas vezes em que tentaram tirá-la desse estado tinha reagido. Lutando, gritando e chutando. Segundo a mãe: “Como se estivesse possuída.”
A junção de tudo isso fez com que os pais procurassem a ajuda da primeira psiquiatra quando Frederica fizera seis anos. Estava completando vinte e dois anos dos mais variados medicamentos e terapias. Sem que aquilo jamais deixasse de persegui-la.
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Sozinha em casa, sentada no sofá da sala no meio de uma das tardes intermináveis em que esperava a mãe e o pai voltarem do trabalho, Frederica procurou inutilmente ocupar-se, pois a mente e o corpo entorpecidos pelos remédios que tomava a impediam de se concentrar no que quer que fosse, o que a levava à repetição contínua e incessante de trocar os canais da TV, imersa na culpa de, com 28 anos, ainda ser uma inútil. Não era sem dor e pesar que atravessava os dias, carregando a consciência de que era, sempre tinha sido um erro, uma falha, um peso, a causa de inúmeras abnegações de seus progenitores. Era a sua incapacidade de ser uma pessoa normal e produtiva que impedia que a mãe se aposentasse, que o pai trocasse de carro, que os dois viajassem, saíssem com amigos, se divertissem e aproveitassem a vida de forma tranquila como mereciam. Não que os dois a cobrassem. Pelo contrário, não era amor que faltava na vida de Frederica. Tanto os pais quanto a avó materna, Hilma - de quem inexplicavelmente, era a neta preferida - faziam questão de demonstrar o quanto ela era querida. Apoiavam-na, de uma maneira que Frederica não compreendia, na qual não via o menor sentido. Nem poderia ser de outra forma, pois só o que enxergava ao olhar para si mesma era o fracasso e o desperdício que considerava sua própria vida.
Um relance de olhos para a TV interrompeu a corrente de auto piedade e puxou a atenção de Frederica para a imagem na tela. A casa antiga com um corredor de altas palmeiras na frente lhe causou uma impressão de reconhecimento profunda, apesar de inteiramente incoerente. Não era a primeira vez que acontecia, mas sem sombra de dúvida, daquela vez a sensação de quase lembrar... Algo que não fazia parte de sua vida - ao menos não da atual - a atingiu com muito mais força do que das outras.
“Dejà vu”, muitos diriam. Mas Frederica sabia, intuía que não era nem podia ser só isso. A respiração descontrolada, os batimentos cardíacos acelerados, o suor frio deixavam claro o quanto sua reação era real, material, física.
Piscou, tentando inutilmente afastá-la. Fechou os olhos e escutou o que a voz do narrador do programa dizia:
“ A Fazenda Santa Fortunata* funciona hoje como um hotel histórico de luxo. A atual sede foi erguida em 1853 e nela destaca-se um imponente alpendre, de influência italiana, encimado por um frontão que é sustentado por colunas de madeira trabalhada. Considerada a “Joia de Barra Alta do Paraíso*”, o casarão com mais de 2.300 metros quadrados possui 59 cômodos e 102 janelas.”
Não pensou, foi seguindo única e exclusivamente a necessidade imperativa que estava sentindo, que tateou à procura do celular. Encontrou o aparelho perdido entre as almofadas do sofá. A despeito do tremor que a tomava, a mão foi rápida, moveu os dedos com uma rapidez e agilidade que não lhe era usual.
Obviamente, a busca lhe rendeu apenas parte da informação que desejava: “Cidade pequena, tranquila e hospitaleira localizada no Vale do Café, Barra Alta do Paraíso* se destacou na cafeicultura do estado do Rio de Janeiro no Século XIX. Memórias do Brasil Colonial ainda podem ser encontradas na Igreja da Matriz e na histórica Fazenda Santa Fortunata*.”
Nesse exato momento, o telefone começou a tocar. Só podia ser ela, a única que pessoa que conhecia que ainda utilizava o aparelho convencional e, exatamente por isso, a mãe de Frederica o mantinha. Levantou-se do sofá e atendeu de imediato:
- Oi, vó.
Não teve tempo de dizer mais nada antes da avó materna perguntar:
- Você está bem?
A voz de dona Hilma soou absolutamente aflita. Frederica respondeu rápido também:
- Sim, estou.
O silêncio que se seguiu deixou claro para Frederica:
- Você teve mais um dos seus pressentimentos.
Desde que se lembrava, ou até mesmo antes disso, a avó parecia intuir o que se passava com ela, a ponto de sempre se fazer presente em seus momentos de crise.
- Dessa vez foi diferente.
Incontestável, pois ao contrário de todas as outras vezes, nada havia acontecido.
- Diferente como?
O estranhamento foi idêntico, mais uma coisa a uni-las.
- Eu não sei explicar.
Frederica fez questão de acalmar a avó:
- Mas eu estou bem. Pode ficar tranquila.
Não que precisasse. Tinha plena consciência de que ela sabia e sentia, sem que houvesse necessidade de falar. Foi de um jeito bem mais leve, quase ameno, que dona Hilma insistiu:
- Não está precisando de nada mesmo? Tem certeza, minha querida?
Frederica aproveitou para lançar:
- Na verdade...
Dona Hilma riu com a mais sincera felicidade:
- Ah, eu sabia!
A despeito do quanto adoraria satisfazer todas as vontades dela, a neta nunca lhe pedia nada.
- É só...
A hesitação de Frederica levou a avó incentivá-la:
- O quê, Fredinha?
O apelido carinhoso concedeu à Frederica a percepção do quanto, para ela, a infância não havia terminado. Estava ali, marcada a ferro e fogo, a dependência integral que era a sua realidade.
- Não é nada, é uma bobagem.
A tristeza que a tomou não passou despercebida, a preocupação retornou para a voz da avó:
- Seja o que for, pode me falar.
Uma vez mais, apressou-se em tranquilizá-la:
- Acabei de ver uma cidade histórica num programa turístico e fiquei com vontade de conhecer. Só isso.
A informação deixou dona Hilma aliviada e animada. Afinal, raramente a neta se interessava por algo, seu estado mais habitual era a apatia. Querer conhecer um lugar fora do Rio de Janeiro, para quem sequer saía de casa era mais inédito ainda. Um sinal de progresso, era o que gostaria que fosse. Se dependesse dela, algo que Frederica concretizaria:
- Quem sabe poderíamos ir juntas, só eu e você? Que cidade é? Será que eu conheço?
O apoio da avó era fundamental, pois Frederica não conseguiria nem poderia ir sozinha. Informou com uma empolgação que lhe era completamente desconhecida:
- Se chama Barra Alta do Paraíso*.
Dona Hilma ficou muda do outro lado da linha. Frederica só foi capaz de dar um único significado a ausência de palavras da avó:
- Você conhece?
Demorou um tempo que pareceu uma vida para que ela finalmente respondesse:
- Eu morei em Barra Alta do Paraíso*... Durante boa parte da minha adolescência e toda a minha infância.
Em princípio, Frederica não deu muita importância:
- Então talvez por isso me pareceu tão familiar.
Compreendeu a gravidade pelo tom austero, duro, carregado de pesar que nunca ouvira a avó usar antes:
- Não. Eu nunca te falei. Nunca contei isso para ninguém, porque eu gostaria de poder apagar, esquecer, fingir que nunca aconteceu.
Alguma coisa muito mais forte do que Frederica, que ela sequer tentaria, pois jamais conseguiria explicar, a impeliu a questionar:
- Isso o quê?
Exigiu uma explicação, apesar de desconhecer o motivo, precisava saber:
- O que aconteceu?
De imediato, Hilma reconheceu que não se tratava de uma curiosidade normal, pelo próprio ímpeto com que Frederica a abordara. Não tentou encontrar justificativas na razão, seguiu o que a intuição lhe soprava:
- Não pode ser pelo telefone. Vou até aí para conversarmos pessoalmente.
*Barra Alta do Paraíso, assim como todos os fatos e personagens desta história, são fictícios.
AVISO IMPORTANTE:
Este romance foi publicado pela Editora Vira Letra
(em versão impressa/livro físico e versão digital/ebook),
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OS TRÊS PRIMEIROS CAPÍTULOS PARA DEGUSTAÇÃO
Postado em 25 de julho de 2019 às 18h.
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