quinta-feira, 25 de julho de 2019

CAPÍTULO 03

Sentada ao lado de Hilma no ônibus, Frederica fechou os olhos e fingiu que dormia. Os dias que antecederam aquele haviam sido... 
Não existiam palavras capazes de definir o que sentia. Não fazia ideia de como ou o que convencera os pais, mas surpreendentemente, após uma breve objeção inicial, eles haviam permitido a viagem e agora as duas estavam ali, a caminho de Barra Alta do Paraíso. Tampouco imaginava o que encontraria, muito menos do que aconteceria quando chegassem lá. 
Subitamente, a densa fumaça cinza que emoldurava sua existência se esvaíra mas ainda assim não era capaz de enxergar mais do que vultos e sombras, imagens que não sabia se um dia seriam significadas. Permanecia divagando, a memória compartilhada em fragmentos, resquícios que não se encaixavam nem formavam qualquer linearidade. Exatamente como sempre, muito mais uma sensação, a memória que tentava inutilmente captar. 
Findas as três horas que a ansiedade fez parecer a eternidade, seguiu Hilma – já não conseguia pensar nela somente como sua avó – para fora do ônibus. 
Depois que pegaram as malas, trocaram um olhar que traduzia o misto de expectativa, angústia e incerteza em que as duas se encontravam. De forma absolutamente contrária à passividade que lhe era habitual, Frederica segurou a mão de Hilma e afirmou muito mais para si mesma:
- Agora não tem mais volta.
A concordância de Hilma se deu com um aceno afirmativo de cabeça, seguido de um determinado:
- Vamos.
Seguiu na frente, em direção às respostas que buscara durante toda a sua vida. Assim que ultrapassou o portão que separava a plataforma de desembarque da parte central da pequena rodoviária, foi abordada por um jovem que se aproximou cautelosamente para não a assustar:
- Com licença... A senhora é a dona Hilma?
Na mesma hora identificou:
- Ricardo?
O neto de Sônia - sua melhor amiga de infância e adolescência, com quem recentemente recuperara o contato através do facebook – sorriu para as duas:
- Sejam bem-vindas! 
Apressou-se em pegar as duas malas de rodinhas que Hilma e Frederica puxavam. As duas ofereceram uma resistência cerimoniosa, que foi facilmente vencida por ele. Sempre solícito, Ricardo indicou:
- Por aqui.
Antes de guiá-las até o estacionamento onde deixara seu carro – na verdade, um táxi. Perguntou:
- Fizeram boa viagem?
Enquanto os dois travavam uma conversa cordial, a atenção de Frederica se voltou para observar à sua volta. Decepcionou-se ao perceber que o local lhe parecia inteiramente desconhecido e não lhe despertava qualquer sensação ou memória.
Assim que entraram no carro - Ricardo no banco do motorista, a avó na frente ao lado dele e Frederica atrás - Hilma sugeriu:
- Faça o favor de ligar o taxímetro.
A despeito do tom bem-humorado que ela usou, Ricardo protestou com seriedade, firmeza e simpatia:
- De jeito nenhum. Não estou trabalhando, só vim buscar vocês no táxi porque é o único carro que temos. 
Antes que Hilma pudesse replicar, completou:
- Minha avó está ansiosa para revê-la. Ela sempre conta histórias das coisas que aprontava quando era criança e a senhora faz parte de todas elas.
Foi o suficiente para que engatassem uma conversa repleta de risos e nostalgia, permitindo que Frederica se dedicasse a olhar pela janela durante o percurso que durou pouco, alguns minutos depois estacionaram em frente a um pequeno café. 
Assim que saíram do táxi, uma senhora sorridente surgiu de dentro do estabelecimento e se dirigiu de braços abertos para Hilma, que retribuiu o abraço da mesma maneira calorosa. 
Ricardo e Frederica ficaram parados lado a lado, assistindo à cena repleta de emoção e de palavras trocadas numa velocidade que as tornava quase incompreensível para eles. As duas senhoras voltaram a se abraçar e, quando se separaram, enxugaram as lágrimas juntas, rindo e voltando a afirmar uma para outra o quanto estavam felizes com o reencontro. 
Só então pareceram se dar conta de que não estavam sozinhas. Hilma apresentou a neta, enquanto Ricardo pegava as bagagens no porta malas do carro.
Sônia as guiou para o portão na lateral do prédio de dois andares, que abriu dando passagem para uma escada. Subiu explicando:
- Depois que meu marido faleceu, me mudei para cá, fica mais fácil administrar o café morando em cima dele.
A primeira impressão que Frederica teve quando entraram no pequeno apartamento foi a de ter voltado no tempo, pois tudo, cada móvel e objeto parecia ser antigo, o que não lhe causou estranhamento algum, pelo contrário, era muito mais familiar do que deveria. Especialmente as cortinas floridas.
A reação de Hilma foi tão idêntica que, ao ver a amiga de infância olhando fixamente para o tecido, Sônia disse:
- São parecidíssimas com as da sua mãe, não são? Eu sempre amei aquelas cortinas. Não foi fácil encontrar uma estampa similar. Felizmente, voltou a moda. É vintage, como hoje dizem.
Já da porta, Ricardo falou diretamente para a avó:
- Coloquei as malas no quarto de hóspedes. Se precisar de mim, me liga. A Milena já deve estar chegando com as crianças.
Sônia virou-se para Hilma e Frederica com um sorriso tão contagiante que tornou a proposta irrecusável:
- Sei que devem estar cansadas, mas vamos descer um pouquinho, quero muito que vocês conheçam meus bisnetos.
Seguiram Ricardo de volta para a rua onde uma mulher e dois jovenzinhos o esperavam na frente do táxi. Assim que viu o pai, o menino abriu um enorme sorriso, correu para ele e o abraçou. Depois, fez o mesmo com a bisavó. A garota não se moveu, sequer levantou os olhos do celular. 
Com um orgulho evidente, Sônia os apresentou:
- Esse é o Jonas, ele tem 15. E aquela é a Tainá, de 13. Meus queridos, essa é a Hilma, uma grande amiga da bisa, que trouxe a neta dela, Frederica, para conhecer Barra Alta do Paraíso.
Tainá se aproximou e as cumprimentou rapidamente, antes de voltar toda a sua atenção novamente para a tela do aparelho em suas mãos. Jonas continuou abraçado em Sônia, olhou para Hilma de lado, apertando os olhos, como se estivesse ressabiado. Depois, olhou diretamente para Frederica e, como se a reconhecesse, sorriu e se aproximou. Frederica recebeu o abraço afetuoso que o garoto com Síndrome de Down lhe deu constrangida à princípio, mas o conforto e o calor que recebeu naquela acolhida a fez sentir uma felicidade incompreensível, que a levou a corresponder com o mesmo amor que sentiu vindo dele. Naquele momento percebeu e aceitou o quanto de inexplicável existia em sua vida. “Na vida”, corrigiu-se mentalmente, sorrindo de volta para Jonas, que a beijou no rosto e, ato contínuo, caminhou em direção à mulher que se mantinha afastada, observando a cena de longe, numa tentativa de se manter esquecida que se mostrou inútil quando todas as atenções se voltaram para ela.
- Minha querida, perdão! Que cabeça a minha! 
Enquanto continuava se desculpando, Sônia foi até a mulher e a pegou pela mão. 
- Essa é a Milena.
Na mesma hora, Jonas a corrigiu:
- Tia Mile.
Surpreendendo Frederica, que a julgara mãe das duas crianças. Depois de beijar o bisneto no rosto, Sônia prosseguiu:
- Isso mesmo, meu querido. A tia Mile é a irmã mais nova da Patrícia, mãe dos meninos. As duas são netas da Maria Tereza. Você lembra da Maria Tereza, não lembra, Hilma?
Um esgar melancólico, que poderia ser facilmente confundido com um sorriso, desenhou-se nos lábios de Hilma:
- Sim, claro que sim. Como vai, Milena? Como está a sua avó?
Cumprimentaram-se com os dois beijinhos de praxe. Milena respondeu:
- Vovó está bem.
Frederica piscou, tentando inutilmente dissipar o arrepio que subiu por sua espinha quando Hilma afirmou, com a mais indisfarçável melancolia:
- Maria Tereza era a melhor amiga da minha irmã mais velha, Glória.
Aquele nome, a história que continha e que todos na cidade conheciam caiu com todo o seu peso, gerando um silêncio que durou pouquíssimo, apenas a fração de segundo que Jonas levou para gritar:
- Glória!  
Antes que alguém pudesse fazer ou dizer qualquer coisa, o menino repetiu, ainda sem desviar os olhos de Frederica:
- Glorinha!
A dor fininha, tão sua conhecida, puxou Frederica para trás, lançando-a dentro da luz que, como sempre, a cegou e a mergulhou num transe incontrolável, que a fez perder o controle de seu corpo e de sua consciência por completo.
A imagem que surgiu em sua frente era inédita e, ao mesmo tempo, familiar. No entanto, demorou para identificá-la. Só quando a jovem sorriu para ela, irradiando uma felicidade que de imediato a contagiou - tamanho era o brilho daquele olhar e o amor que transbordava e emitia -, que Frederica soube:
- Tei.
Repetiu o nome dela, que começou a se afastar, causando um desespero profundo, que fez Frederica gritar alto. 
O som da própria voz a trouxe de volta. O primeiro contato com a realidade foi Hilma, chamando-a de forma incessante:
- Fredinha... Frederica!
Logo depois, percebeu que estava em um ambiente fechado, sentada em uma cadeira, com todos os olhares fixos nela. Hilma a abraçou e falou em seu ouvido:
- Você desmaiou e nós a trouxemos para dentro do café. 
Depois, virou-se para Sônia, Ricardo e Jonas - que se mantinha abraçado à Milena -, e tratou de tranquilizá-los:
- Ela está bem. Não foi nada. Acontece de vez em quando, por causa da pressão baixa.
A mentira, apesar de absurda, foi imediatamente aceita. Sônia falou num tom absolutamente bem-humorado antes de caminhar em direção ao balcão:
- Nada que um chazinho e alguns biscoitinhos caseiros não possam curar. 
Ricardo perguntou para Milena:
- Onde está a Tainá?
Ela nem precisou pensar, muito menos procurar:
- Lá fora, vidrada no celular. Nem deve ter percebido o que aconteceu, muito menos que entramos.
Ele riu:
- Podia acabar o mundo e ela não ia perceber. 
Após sacudir a cabeça em reprovação à filha, colocou a mão no ombro de Jonas:
- Ainda bem que você não é como a sua irmã.
E beijou Milena no rosto em despedida:
- Obrigado por ter trazido eles. Diz pra sua mãe que amanhã eu deixo os dois em casa de noite, por volta das oito.
A anuência de Milena se deu sem palavras, através de um gesto simples, com o polegar para cima. Ele chamou o filho:
- Vamos, amigão?
Em resposta, Jonas beijou a tia, soltou-se dela e foi até Hilma e Frederica:
- Tchau!
Falou antes de abraçar e beijar primeiro Hilma e depois Frederica, com um carinho tão inegável que se fez instantaneamente recíproco. 
Depois de se despedir da bisavó com mais beijos e abraços, o menino ainda se virou e acenou da porta, antes de sair do café junto com o pai.
- Ele é muito especial, né?
Assim que terminou a frase, Frederica percebeu que poderia ser mal interpretada:
- O que eu quero dizer é...
Com um sorriso tão sincero e simpático quanto o do sobrinho, Milena a impediu de se explicar:
- Eu entendi. E concordo com você, o Jonas tem muito mais luz do que todos nós juntos.
O olhar encontrou o de Frederica e as duas sorriram uma para a outra, em plena concordância, no exato momento em que Sônia voltou, trazendo uma bandeja que depositou na mesa mais próxima, onde arrumou com esmero um bule, um potinho cheio de biscoitos e quatro xícaras.
Milena tentou se esquivar:
- Eu também vou indo, tenho que...
Em vão, pois Sônia jamais permitiria:
- Nada disso, dona Milena! Eu não aceito essa desfeita! Pode vir aqui agora mesmo!
Sem outra alternativa, Milena obedeceu. Sentou-se entre Sônia e Hilma, de frente para Frederica, e se manteve igualmente calada. Não demorou para que Sônia parasse de falar sobre o passado com a amiga de infância e tentasse incluir as duas jovens na conversa.
- Você trabalha com o quê, minha querida?
Pega inteiramente de surpresa, Frederica engasgou com a pergunta. Coube a Hilma salvá-la, com mais uma mentira:
- Ela não está trabalhando, está estudando pra concurso público.
No entanto, a curiosidade de Sônia parecia não ter fim:
- É formada em quê?
Tornando impossível para Frederica esconder o próprio desconforto. Sentindo uma empatia profunda pela outra, Milena fez algo que para ela era inédito - colocou a si mesma na linha de frente:
- Eu não fiz faculdade nenhuma. E nem pretendo fazer.
Funcionou, pois Sônia pareceu se esquecer de Frederica inteiramente:
- Minha querida, nem todo mundo nasce com um dom como o seu.
Para espanto de Hilma, ao invés de aproveitar para se manter calada, Frederica não conseguiu conter um inusitado interesse:
- Dom? Que dom?
Foi com um prazer indisfarçável que Sônia afirmou:
- A Milena é uma doceira de mão cheia. A melhor da região. 
A jovem sorriu, com uma timidez constrangida:
- Ela está exagerando.
Frase que Sônia rebateu, obviamente:
- É a mais pura verdade, não seja modesta. As pessoas vêm de longe pra comprar as maravilhas que essa menina faz. 
Uma vez mais, Milena contestou o elogio:
- Tudo que eu sei aprendi com a minha avó.
Frederica ergueu os olhos, buscou e encontrou os de Milena:
- A Tei?
Nenhuma das duas desviou o olhar, nem mesmo quando Sônia disse:
- Ninguém chama a Maria Tereza assim faz tempo.
Foi ainda com olhos nos de Frederica que Milena falou:
- Ela odeia esse apelido.
Algo mais forte que Frederica a fez questionar:
- Por quê?
Sem hesitação alguma, Milena soltou a informação:
- Faz parte de um tempo que ela quer esquecer.
Mas não era, nem de longe, o que Frederica desejava e precisava saber.
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OS TRÊS PRIMEIROS CAPÍTULOS PARA DEGUSTAÇÃO 

Postado em 05 de agosto de 2019 às 18h.
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Um comentário:

  1. he he he...
    A simpatia explicita entre Frederica e Milena é um ótimo sinal... k k k
    O Jonas é mesmo um ser de luz e simpatia... amado, coração aberto as pessoas...
    Pq Jonas chamou Fred de Glorinha??
    E Tei hein?? O q Maria Tereza quer esquecer??
    Adorei... mtas perguntas, na realidade mais perguntas do q respostas... adoro
    tudo isso...

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