quinta-feira, 25 de julho de 2019

CAPÍTULO 02

Em menos de um par de horas depois, dona Hilma chegou. Assim que colocou os olhos nela, Frederica viu que estivera chorando, mas não disse nada a respeito. Mesmo se quisesse, não teria tempo, pois a avó a beijou, a abraçou longamente e depois a puxou pela mão até o sofá, onde se acomodaram lado a lado. Olhando nos olhos neta, Hilma foi direta:
- Você sabe que eu perdi uma irmã, não sabe?
Com um gesto de cabeça, Frederica assentiu. Sabia muito por alto, através de comentários que tinha escutado de forma furtiva ou involuntária. Nunca nenhuma informação concreta lhe havia sido passada. Na verdade, a tia avó era um assunto interdito, que todos na família evitavam.
Arriscou um incerto:
- Ela morreu, não é?
Deixando claro para a avó que ela desconhecia a verdade:
- Presumo que está morta, porque...
Antes de completar, fitou Frederica de um jeito que ela foi incapaz de compreender:
- Glorinha fugiu de casa, há mais de 50 anos e não tivemos mais notícias dela.
O nome. Foi nisso que Frederica se apegou, pois era conhecido demais para passar despercebido ou permitir que ouvisse o resto que foi dito:
- Glorinha?
Dona Hilma olhou profundamente para Frederica enquanto falava:
- Minha irmã Glória... Maria da Glória. Era dois anos mais velha do que eu. Nós éramos muito próximas. Mesmo assim, ela nunca me falou e eu também não desconfiei de nada. Fiquei decepcionada, com muita raiva, me sentindo traída e enganada porque eu realmente acreditava que não havia segredos entre nós. Foi um choque quando ela sumiu, logo após completar dezoito anos, deixando apenas essa carta para os nossos pais.
Estendeu o papel amarelado que retirou da bolsa para a neta, que hesitou antes de finalmente segurá-lo entre os dedos. Além das inúmeras marcas que o tempo havia deixado na missiva, estava rasgada em pedaços cuidadosamente colados com fita adesiva transparente. 
Frederica respirou fundo, buscando ar, antes mesmo que lhe faltasse e, só depois, numa total descontinuidade de tempo, apreendeu as letras, palavras e frases que se formaram em sua mente antes mesmo que as visualizasse, deixando uma única e inquestionável certeza: não era a primeira vez que lia aquela mensagem.
Quando terminou, ergueu os olhos e encontrou os de Hilma fixos nela, como se esperasse algo mais. Se havia, Frederica não estava nem queria estar preparada, muito menos saber o que seria. 
Devolveu a carta que parecia lhe queimar não as mãos, mas dentro do peito, no estômago, nas vísceras. Algo que a fez imediatamente pensar: “Preciso do meu remédio”, apesar da sensação de que não era disso que se tratava, nenhuma substância química resolveria. Teve certeza quando a avó a olhou nos olhos e soprou:
- Glória?
Um chamado que causou uma dor fininha que a puxou para trás, para uma luz que piscou e a cegou em tremores convulsivos, enquanto se repetia, desta vez vindo da presença atrás dela, tão perto que sentiu o hálito, antes mesmo de ouvir o sussurro doce e inteiramente conhecido:
- Glória... Glorinha...
Logo em seguida, os gritos. Mergulhada num transe incontrolável, que a fez tombar e perder o controle do corpo e da consciência completamente, Frederica foi incapaz de perceber que era ela mesma quem os tinha emitido.
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Hilma jamais seria capaz de nomear o turbilhão que a tomou ao ver os olhos da neta tremularem e virarem antes dela emitir uma série de gritos que só não eram mais assustadores do que a forma como ela caiu no chão e começou a se sacudir e se contorcer. À primeira vista, para alguém desavisado, parecia algo físico. Uma convulsão, talvez epilepsia. 
Para Hilma não. 
Pois durante anos ela havia pesquisado, procurado e estudado. Apesar disso, não estava absolutamente preparada. Fazia tempo, alguns anos que sabia, não concretamente, claro. Não passava de uma suspeita, uma intuição, uma sensação longe de ser certeza, que muitas vezes a fazia duvidar da própria sanidade. No caminho que percorrera nessa busca tinha presenciado o quanto as pessoas – inclusive ela mesma – são capazes de acreditar em qualquer coisa, por mais absurda e improvável que seja, na ânsia de uma resposta, um consolo, um contato com os entes amados perdidos. 
Mas desde que Frederica nascera ela sentia uma estranha e inexplicável conexão, um amor mais forte até do que o que nutria pela própria filha. 
A neta tinha sido, de muitas maneiras, um bebê difícil. E uma criança mais problemática ainda. Por mais estranho que pudesse parecer, algo que Hilma tinha acabado por nomear de sexto sentido a fez perceber - antes mesmo da primeira  das muitas vezes em que a menina tinha insistido em ser chamada de Glorinha, quando ainda era muito pequena, pequena demais para ser algo inventado por ela - que aquilo vinha de outra pessoa ou de outra vida. Desde então, Hilma esperava por respostas, mesmo sem saber se algum dia as teria.
Óbvio que sua intenção não era, de forma alguma, manifestar aquilo na pessoa que mais amava no mundo. Enquanto se ajoelhava ao lado dela e amparava a cabeça de Frederica para que ela não a batesse no chão arrependeu-se profundamente por ter se deixado levar pelo próprio egoísmo. Fechou os olhos e procurou dentro de si mesma. Uma prece, mesmo sem sentimento ou fé, palavras nas quais pudesse se apegar e acreditar, mas não encontrou nada além do mais profundo vazio. 
Olhou para a neta, inclinou-se sobre ela, as lágrimas caindo em profusão sobre o rosto já menos convulsionado, enquanto a chamava:
- Frederica... Frederica...
De súbito, tão repentinamente quanto havia começado, o acesso parou e Frederica ficou completamente imóvel em seus braços. Antes que Hilma pudesse fazer qualquer coisa, a filha adentrou correndo na sala:
- O que aconteceu?
Ajoelhou-se ao lado das duas e, acariciando o rosto de Frederica, começou a chamá-la com uma suavidade inversamente contrária à preocupação e o nervosismo em que se encontrava. Não era a primeira nem seria a última vez que encontrava a filha inconsciente e caída no chão, por isso sabia perfeitamente que gritar ou sacudi-la não adiantaria, pelo contrário, só serviria para piorar a situação. Deixou escapar um suspiro aliviado ao vê-la piscar e, alguns segundos depois, abrir os olhos.
Sentindo-se inteiramente perdida, Frederica voltou devagar. Bastou um único olhar para as duas mulheres debruçadas sobre ela para saber onde estava. Situar quem era já não foi tão fácil. Precisou ouvir:
- Frederica?
Para afinal tomar ciência de que estava olhando para a mãe e a avó. No entanto, quando seu olhar cruzou com o da mulher mais velha ficou claro que o segredo que agora dividiam jamais poderia ser compartilhado. Por isso, quando a mãe perguntou o que havia acontecido, mentiu:
- Não sei, não lembro de nada.
Absolutamente inconfessável, a verdade era a última coisa que poderia dizer, pois nem para ela mesma parecia coerente, muito menos real. 
Sentou-se devagar, com a mesma tranquilidade com que comunicou à mãe que iria para o quarto descansar e pediu para a avó acompanhá-la.
Assim que Hilma fechou a porta do quarto de Frederica atrás de si, percebeu que algo havia mudado, pois o olhar e a voz da neta estavam completamente diferentes ao fitá-la e ao dizer, com a segurança que antes lhe faltava:
- Eu tinha um anel igual ao seu na minha mão direita. Dobrei a carta e a coloquei em um envelope endereçado aos nossos pais. Deixei o envelope em cima da mesa da sala. Uma mesa de madeira redonda, com uma tolha de renda branca e um vaso de porcelana com flores azuis em cima.
A emoção estava claramente expressa na voz de Hilma:
- Era o vaso preferido da mamãe.
Por mais improvável e impossível que fosse, já não havia dúvida:
- Glória?
Não havia dúvida alguma, a pergunta foi muito mais retórica. Mesmo assim, Frederica faz questão de responder:
- Sim, sou eu.
Abraçaram-se e choraram juntas a saudade e a distância de uma existência inteira. No entanto, não era simples, muito menos fácil aceitar ou compreender. Acima de tudo, uma dúvida última permanecia:
- Mas como? O que aconteceu? Quando você...?
O olhar da neta mudou, voltou a ser o de sempre. Frederica também não possuía as respostas ainda:
- Eu não sei. Sempre estiveram aqui. Essas imagens e lembranças incompreensíveis, mas só agora eu comecei a entender, ou melhor... Eu não compreendo, na verdade acho que enlouqueci de vez.
As lágrimas escorreram, sem que fosse capaz de impedi-las. Um instante em que se deu conta pela primeira vez de que tudo que acreditara durante aqueles 28 anos era baseado em mentira e erro. Em sua suposta insanidade estava contido um universo de lucidez. Hilma pensava o mesmo:
- Não é nem nunca foi loucura. Você sabe e eu sei.
A despeito do medo que a realidade absolutamente inacreditável imprimia, a necessidade de encará-la era imprescindível. Devia isso a si mesma:
- Eu preciso voltar a Barra Alta do Paraíso*.
*Nota sobre o capítulo: Barra Alta do Paraíso é uma cidade fictícia.

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Postado em 29 de julho de 2019 às 18h.
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4 comentários:

  1. MARAVILHOSO...
    Adoro qdo ao final da leitura sinto um sorriso se desenhando
    em mim... amei. mesmooooooooo...

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  2. Fiquei com a curiosidade afiada, intrigada e instigada, para ler o q nos reservas, dp desta breve "apresentacão" de Glória...Ansiosa pelo desenrolar da história, que promete caminhos invulgares...Adoro
    Beijos Sandra

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  3. Uauh... Estou a gostar muito da coluna vertebral desta história.
    Diria que Glorinha, não desaparece por vontade própria...
    E agora??

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